Por acaso, num dia frio, abriu uma gaveta que há muito não via a luz. Teve que se esforçar para não deixar cair todos os itens que pulavam dali, gritando por espaço e ar, entre tantas coisas que guardou, não sabia para quê.
Decidiu que era o momento de uma faxina. Os últimos dias de dezembro sempre sugeriam esse tipo de ritual. Estranhamente, porém, os últimos dezembros não haviam sido persuasivos o suficiente, o que podia facilmente ser percebido pela organização das coisas ali.
Muniu-se de uma sacola que funcionaria como “isso não presta” e começou a triagem. O primeiro item que tirou da gaveta foi um recibo, desses amarelos. “Cupom fiscal? Preciso disso?”, pensou. Depois de ler o que havia comprado naquele 13/07/2009, às 14:27, concluiu que não, realmente não precisaria daquilo. Afinal, de que adiantaria, agora, dois anos e meio depois, saber que naquela tarde havia comido iogurte com polpa de frutas e um pão com muçarela e presunto? Pior ainda, de que adiantava, naquele mesmo 13/07/2009, já às 14:28, guardar um documento que dizia o que havia acabado de comprar? Será que não tinham-no deixado sair do mercado com os produtos, mas só com uma descrição deles? Como se dissessem “pode ter certeza, foi isso aí que você comprou! Se não acredita, olhe, daí mesmo, para a sacola que ficará depositada aqui conosco”.
Dando uma segunda olhada no conteúdo da gaveta, viu que não seria prático tirar dali coisa por coisa, para decidir o que não prestava. Então, tentando ser o mais prático possível, despejou todos os comprovantes no chão. Era uma gaveta só de comprovantes. Um porta-comprovantes.
Mas havia também cartões, que um dia estiveram colados a presentes que foram dados em datas especiais, e ainda outros, recebidos em datas aleatórias. E ali estavam embalagens de produtos, fotos, cds sem capas, fitas de vídeo, provas da faculdade, canhotos de cheques emitidos anos antes.
Ainda, todos comprovantes.
Comprovantes de que se teve alguém a quem presentear, de que se teve alguém que se importava com ele, de que a participação naquela promoção era legítima, de que os eventos haviam realmente acontecido, de que aquele refrão repetitivo em sua cabeça não era composição sua, de que a cicatriz tinha origem no tombo filmado, de que, sim, merecia aquela nota, “olha,” havia acertado todas as respostas, e “sim, esses cheques foram todos pagos”.
A sacola do “isso não presta” não comportava mais tanta inutilidade. Como nas grandes estações de coleta de lixo, camada após camada de papel, ele pisava na pilha para que, compactando o entulho, não precisasse de uma segunda opção de armazenamento. Fazendo isso, ele pisava também num passado que estava ali, em minúcias contábeis, esperando para que alguém o fiscalizasse.
Ninguém, porém, fiscalizaria. Durante todos aqueles anos, guardara provas de que havia existido. Uma forma de mostrar que passou por esse mundo. Aquela sacola, cheia de papéis antigos e empoeirados, era como um coração entalhado no tronco de uma árvore, ou um muro pichado, gritando para provar que o entalhador ou que o grafiteiro haviam estado ali.
Para a árvore, machado. Para o muro, tinta. Para seus comprovantes, a lixeira.
E ninguém jamais saberia do iogurte com polpa de frutas.